segunda-feira, 13 de julho de 2009

Madame Chauchat



Ainda bebendo na fonte dos grandes escritores, dentre os meus prediletos está o alemão Thomas Mann. Sua obra prima, A Montanha Mágica é um volume denso e extenso, de uma beleza inigualável, reservada aos que se aventuram em suas páginas.

A cena que transcrevo abaixo foi uma das que mais me marcaram em todo o livro. O protagonista, Hans Castorp, está enfeitiçado pela beleza da exótica russa Clavdia Chauchat. A delicadeza com que o autor descreve a adoração platônica de Castorp por ela é notável, e essa passagem é um exemplo.

Afinal, o que é a verdadeira submissão senão cuidar do bem estar de quem se adora a cada instante, nos menores detalhes, mesmo que passem despercebidos por ela? Encontrei essa foto da capa do DVD alemão. Acho a atitude de ambos perfeita. Bem, vamos ao texto.

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Outra vez, durante o jantar, os raios de um esplêndido pôr-do-sol caem sobre a mesa dos "russos distintos". Haviam corrido as cortinas das portas do avarandado e das janelas, mas em alguma parte sobrou uma fresta, através da qual um clarão vermelho, deslumbrante, apesar de frio, abre caminho e fere justamente a cabeça de Mme Chauchat de maneira que, na conversa com o compatriota de peito sumido à sua direita, ela tem de resguardar os olhos com a mão. É um incômodo, mas tão pouco grave que ninguém se preocupa. A própria interessada nem sequer parece reparar na pequena contrariedade. Mas Hans Castorp descobre-a através de toda a sala. Observa-a durante alguns instantes, examinando a situação, acompanhando o caminho dos raios, e fixando o ponto de onde incidem. É da janela ogival, lá atrás, à direita, no canto entre uma das portas do avarandado e a mesa dos "russos ordinários", muito distante do lugar de Mme Chauchat e quase igualmente afastado do de Hans Castorp. E ele toma as suas decisões. Sem proferir nenhuma palavra, levanta-se, passa, com o guardanapo na mão, diagonalmente, por entre as mesas, atravessa a sala, une cuidadosamente as cortinas creme, certifica-se, com um olhar por cima do ombro, de que o clarão vesperal já não pode mais entrar e que Mme Chauchat está livre daquele inconveniente e, esforçando-se por parecer indiferente, volta à sua mesa. Um jovem atencioso que faz o necessário, já que mais ninguém se lembra de fazê-lo. Muito poucos notaram a sua intervenção; Mme Chauchat, porém, sentiu-se imediatamente aliviada e virou-se em direção a ele, conservando essa posição até que Hans Castorp alcançou o seu lugar e, sentando-se, olhou para ela, que, com um sorriso entre amável e surpreendido, agradeceu, avançando um pouco a cabeça, sem propriamente incliná-la. Ele retribuiu com uma mesura correta. Seu coração quedou-se imóvel, parecendo ter deixado de pulsar. Somente mais tarde, quando tudo terminara, pôs-se a martelar, e foi então que Hans Castorp percebeu que Joachim. tinha os olhos discretamente cravados no prato. Ao mesmo tempo observou que a Sra. Stõhr dava uma cotovelada no Dr. Blumenkohl e, com um risinho afogado, procurava olhares cúmplices em toda parte, na sua própria mesa tanto como nas demais...

Relatamos um acontecimento cotidiano, mas o cotidiano torna-se estranho quando se desenvolve em terreno estranho.

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A Montanha Mágica, Thomas Mann

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