segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Rituais Vitorianos

Tendo molhado a pena pela última vez no pote de tinta violeta, o escravo termina de caligrafar o envelope com um treinado arabesco. Confere novamente um a um os envelopes com a lista de convidados ditada por sua Dona, cuidando para que todos contenham o convite. Acende o lacre de cera, e cuidadosamente deixa os pingos caírem sobre a aba do envelope, estampando então a cera ainda derretida com o sinete com o monograma da Dona.

São os convites para uma pequena reunião íntima, um chá vespertino, que Ela está organizando.

Contempla orgulhoso, um por um, os envelopes cuidadosamente caligrafados e lacrados, e suspira, feliz por pertencer a uma Dona que valoriza esses pequenos rituais vitorianos, resquícios de elegância esquecidos na correria da vida moderna.

Observa o cuidadoso traçado dos nomes, e não deixa de se impressionar com o resultado. As noites de treino, após os afazeres domésticos, valeram a pena. Jamais poderia imaginar que ele, que se julgava tão desajeitado, iria conseguir um resultado tão bonito. Mais do que o orgulho, estava agradecido por sua Dona, que aos poucos ia moldando suas habilidades aos interesses Dela.

Partes da sua vida antiga agora estavam tão distantes que lhe pareciam quase irreais. O futebol com os amigos, as trilhas de jipe, as happy hours no fim da tarde, tudo isso foi sendo aos poucos deixado de lado, em prol de coisas mais proveitosas para sua Dona. Foi uma transição suave, ele agora percebe. Jamais Ela impôs que deixasse de fazer o que queria, jamais lhe deu um ultimato. Não, foi muito mais sutil e pior que isso. Ela o fez se desinteressar por essas coisas, a ponto de ele querer abandoná-las. E ele deixou-se manipular, pouco a pouco abrindo mão, sem notar, das coisas que eram tão suas.

Habilmente Ela utilizou seu instinto de servir para operar essa transformação, sua insaciável curiosidade intelectual fui usada contra ele mesmo. Desejou aprender tudo sobre as coisas do mundo Dela, e a caligrafia era apenas o mais recente desses feitos. Outras habilidades já haviam sido conquistadas, a culinária e a massagem foram logo as primeiras, e outras viriam. Sua Dona já havia dito que queria que ele aprendesse sobre chás... quais os mais adequados para as diversas horas do dia, e Ela lhe deixaria usar a internet por algumas horas para essas pesquisas.

Mas não seria amanhã. O sábado seria dedicado a entregar esses convites nas portarias das convidadas. E teria que ir de ônibus e metrô... o orçamento que Ela lhe deixava, após recolher o seu salário, não dava para o luxo de um taxi.

Com essa lembrança, guardou os envelopes e foi dormir no colchão duro do quarto de empregada, pois teria que acordar cedo. Seria um sábado longo pois essas entregas não poderiam atrasar o expediente da casa.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Livraria


Uma chuvosa tarde de domingo. A primeira tarde chuvosa, bem vinda, depois de uma seqüência interminável de dias insuportavelmente quentes. Estava no shopping mais charmoso, do bairro mais charmoso desta charmosa cidade do Rio de Janeiro.

E ainda por cima, estava na livraria da Travessa. Percorria as mesas e estantes, buscando novidades. Nas mãos algumas compras já escolhidas, como o CD da violinista Midori com a segunda sonata para violino solo de Bach.

Numa virada repentina meu olhar se prendeu no vulto que entrava na loja. Um linda Mulher, cabelos lisos, louros, bela e madura. Paro para olhar melhor, ela sai detrás de uma mesa e a vejo no alto de saltos altíssimos, longas pernas que um short preto expunha. Uma camisa branca, de griffe, T. Hilfiger, marcava suas formas, certamente fruto de longas horas na academia.

Me perdi, imensamente perturbado segui aquela Deusa pela livraria. Por um instante ficamos lado a lado percorrendo os livros, ela parecia ter notado o feitiço que exercia sobre mim, e se divertia.

Me perdi em cada detalhe, seu cordão, suas pulseiras, seus saltos. Notei um outro homem tão perturbado quanto eu.

E como veio ela desapareceu, numa virada do fluxo que enchia a livraria. Não me restou nada, a não ser a doce lembrança, à qual me entrego ao escrever esse post, talvez na velada esperança que ela possa um dia ler essas linhas.

E a ela, fugidia deusa de uma tarde chuvosa, dedico o poema abaixo, de Baudelaire, que tão bem retrata nosso "encontro";

A uma passante

A rua ensurdecedora ao redor de mim agoniza.
Longa, delgada, em grande luto, dor majestosa,
Uma mulher passa, de uma mão faustosa,
Soerguendo-se, balançando o festão e a bainha;


Ágil e nobre, com sua perna de estátua.
Eu, embevecido, inquieto como um extravagante, bebia
Em seus olhos, o céu lívido onde se oculta o furacão,
A doçura que fascina e o prazer que destrói.


Um clarão... depois a noite! - Beleza fugidia
Cujo olhar me faz subitamente renascer,
Não te verei senão na eternidade?

Alhures; bem longe daqui! Muito tarde! Jamais talvez!
Pois ignoro onde tu foste, tu não sabes onde vou,
Ah se eu a amasse, ah se eu a conhecesse!


Charles Baudelaire, 1821-1867, Les Fleurs du mal